domingo, 22 de dezembro de 2013

A harmonia natalina - uma breve reflexão sobre o sentido do natal.


Todo fim de ano, com as comemorações natalinas, vêem as mensagens de amor e paz, e o desejo de que todos os homens possam viver em 'harmonia'. Porém, em tempo de crescente intolerância entre as diferenças de raça, credo, sexualidade etc, as mensagens natalinas de respeito, amor e esperança estão cada vez mais distantes da realidade. Será mesmo possível vivermos em 'harmonia'?


Para pensar sobre isso, vamos voltar um pouco no conceito da palavra 'harmonia'.


Como músico, ao falar de harmonia, já logo penso no sentido musical da palavra, sobre a construção de acordes e a relação entre eles. Mas muito embora a palavra 'harmoníai' comece a ser usada em termos musicais por volta do século IV a.C. (com um significado bem diferente do uso moderno), a origem do termo nasce na carpintaria e na maçonaria (como arte de construir coisas).


Dentro da carpintaria, o termo 'harmoníai' se refere às peças utilizadas para juntar outras, comumente utilizadas nas "quinas", como as dobradiças ou cantoneiras de ferro. A utilização desse termo com esse contexto pode ser observada entre os o séc VIII e VI a.C. nas obras de Homero e Heródoto.

Apenas como ilustração, veja o trecho abaixo da Odisséia, onde Odisseu, como homem experiente em construções (eu eîdòs tektosynáon), reúne as tábuas de madeira (hérmosen) usando pregos e outras harmoníai:


"A todos ele furou, ajustou-as umas às outrase, com cavilhas e ligaduras (άρμονίησιν), martelou-as.Qual homem, experiente construtor,arredonda o  fundo de um vasto cargueiro,de tal largura fez Odisseu a barca".

Utilizando-se desse sentido de "ligação", "amarra", "junta", por vezes a palavra 'harmoníai' é utilizada de modo figurativo para representar um pacto ou um acordo, como no exemplo abaixo das Ilíadas:
"Pois [eles] serão os melhores testemunhos e guardas de nossos laços (άρμονίάων)".

É interessante olharmos que até mesmo a palavra carruagem, άρμα - harma (Strong - G716), parece ter origem na palavra 'harmoníai', se referindo ao eixo de ligação entre as duas rodas.

Ainda seguindo o sentido de "ligação", a palavra Harmonia (agora como nome próprio) também aparece na mitologia com a deusa de mesmo nome. Embora a mitologia grega não seja muito precisa, e por vezes Harmonia seja confundida com a própria Afrodite (deusa do amor), de acordo com a Teogonia de Hesíodo, filha de Afrodite com Ares (deus da guerra), Harmonia incorpora o princípio de "união", em oposição a seus irmãos, Phóbos e Deîmos, que representam desordem e separação (ou pânico). É vinculado à Harmonia (também chamada de Philía, a artesã das coisas vivas e suas partes) a ligação dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar) que unidos geram a vida dos mortais.


Com o caminhar do tempo, os escritores e pensadores começam a questionar as histórias da mitologia, mas não negaram que existe algo de divino que dá sentido à ordem do mundo, uma 'harmoníai' capaz de ligar todas as coisas. Podemos ver isso na citação de Agamêmnon de Ésquilo, quando faz a enigmática evocação:

"Zeus, quem quer que seja, se assim agrada-lhe ser chamado, assim evoco-o".
Em Heráclito:
"Uma coisa, a única verdadeiramente sábia, consente e não consente ser chamado pelo nome Zeus".

Ou mesmo séculos mais tarde, quando Paulo de Tarso, principal responsável pela propagação do cristianismo, pregando em Atenas se depara com um altar ao "Deus Desconhecido", revelando que os gregos não conseguiam explicar por sua mitologia tudo o que observavam no mundo:
"pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio." Atos 17:23
Voltando ao contexto da palavra 'harmoníai', o filósofo Heráclito parece ter sido o primeiro a separar o conceito da deusa Harmonia de sua personificação como divindade. Em seu pensamento, Heráclito separa a harmonia em dois tipos: a aparente e a não-aparente (fragmento 54 D.-K.). Essa última, mais forte que a primeira, é associada à "harmonia reciprocamente tensa" do fragmento 51 D.-K.:

"harmonía reciprocamente tensa, como a do arco e da lira".
Paula Corrêa (pág. 27), cita o trabalho de Kirk (1954: 223-24) parar explicar o conceito da harmonia reciprocamente tensa como "conexões não aparentes que, envolvendo tensão, subjazem os contrários unindo todas as coisas". Ainda segundo o texto de Paula, em relação ao fragmento 51 D.-K., a harmonia não-aparente do texto "seria o meio de ligação comum ao arco e à lira, que é palíntonos (agem em ambas as direções sob forças opostas), assim ela reúne os contrários que são unidos".

Nesse ponto eu gostaria de sair da análise semântica da palavra para começar a aplicação do seu conceito e responder à pergunta inicial do texto. Para isso, peço licença para expressar a minha cosmovisão para responder sobre o assunto.


O fato é que nossa tendência natural como humanos, que é egoísta por natureza, é chocar-se em tensão. Na "fogueira das vaidades" das opiniões e pensamentos que temos, tentamos sobrepor o nosso querer sobre os outros contrários a nós, prevalecendo assim o que tiver mais força. Citando a Teogonia, os princípios que regem nossa humanidade está mais para Phóbos e Deîmos (e seus daímons), do que para a Harmonia.


Apesar de toda a razão, toda a filosofia, toda a ciência e todo o desenvolvimento que experimentamos na história da humanidade, o homem não foi capaz de encontrar essa harmonia  por si só, e continuamos trilhando o caminho do ódio e da separação.

No entanto, gostaria de utilizar a interpretação de Krans (1959) sobre a harmonia de Heráclito para dar uma boa notícia a respeito dessa tensão. Krans interpreta a harmonia não aparente, capaz de subjazer os contrários, como Logos, termo corrente entre os gregos que se refere ao princípio criador e mantenedor do universo em ordem e beleza. O termo e o conceito de logos, traduzido como verbo, é utilizado em um texto bíblico muito famoso, que se encontra no capítulo 1 do evangelho do apóstolo João:


"No princípio era aquele que é a Palavra (Logos). Ele estava com Deus, e era Deus.Ela estava com Deus no princípio.Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito.Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens." João 1:1-4
João, que escreve seu evangelho para os gentios (gregos), ao citar que Jesus era o logos (como se pode ler no decorrer do evangelho), deixa claro para o leitor que a harmonia não aparente de Heráclito, a força capaz de vencer os domínios de Phóbos e Deîmos, e de sobrepor aos contrários afim de tornar o que era desarmonioso em algo novo e belo (como a nota musical produzida pela tensão entre o arco e a corda), o princípio divino de união encarnou como homem, e de uma vez por todas reconciliou-os consigo.

Cristo é a única harmonia capaz de transpor a barreira dos contrários do pecado e religar o homem com Deus, e consequentemente, entre si. Gosto muito da carta que o Apóstolo Paulo envia aos Colossenses, onde ele reafirma Cristo como o Logos (harmonia) do mundo:
"Pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele.Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste.Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia.Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude,e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz." Colossenses 1:16-20

Essa é a "boa nova" (ou evangelho) anunciado no Natal. O natal, ou nascimento, se refere à vinda do filho de Deus ao mundo:
"Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele." João 3:16-17
Deus estabeleceu a paz, a harmonia entre os homens através do sangue de seu filho unigênito derramando na cruz do calvário, e essa harmonia, essa "paz que excede todo o entendimento" está apenas a uma oração distância.
"Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo." Romanos 10:9
Com isso, gostaria de me dirigir a você que leu esse texto, independente de viver em um contexto cristão ou não, e gostaria de convidá-lo a aproveitar as comemorações do fim de ano, em que comumente utilizamos para estar com os amigos e família, para parar, ainda que por alguns minutos, e refletisse sobre você e sua vida. Essa paz, essa harmonia proposta pelo cristianismo não é apenas uma reflexão teórica, ou dogma religioso, ele é real e ocorre de modo prático na vida dos que creem.  Cristianismo não é uma mera religião formal, mas um caminho de vida. 

Se você quiser experimentar isso, de fato, eu me coloco à disposição para que possamos caminhar juntos aprendendo sobre aquele que é a luz para guiar os nossos passos.

Esse é meu desejo para você nesse fim de ano, para o ano de 2014, e para o resto de nossas vidas.

Deus abençoe a cada um.

Um feliz natal, e um ano novo.

No amor do Mestre,

Renan Alencar de Carvalho


Bibliografia:

Harmonia: Mito e Música na Grécia Antiga - Corrêa, Paula - Ed. Humanitas: 2008.
Heraclitus: The Cosmic Fragments - Kirk, G. S. - Cambridge: 1954.
Die Fragmente der Vorsocratiker - Diels, H.; Kranz W. - Berlin: 1959.

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