sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Análise - "Constelação, Malabarista e Globo de Neve" e "De Vento em Popa"

Para quem está mais próximo de mim, sabe que no momento estou fazendo um curso de 2 anos para formação de "ministros" de louvor no Instituto Adoração & Adoradores. Como trabalho da matéria de "História da Música Cristã Contemporânea Brasileira", escrevi o texto abaixo fazendo uma conexão entre os textos "Constelação, Malabarista e Globo de Neve" de Marcos Almeida (Palavra Antiga) e o texto "De Vento em Popa" de Gladir Cabral.


"Parte do que nos faz à imagem e semelhança de Deus é a capacidade criativa que nos foi dada. E assim foi feito porque Deus deu a toda humanidade a incumbência de produzir cultura, em todos os seus aspectos. Mas desde o Gênesis, após a queda, parece haver certo distanciamento no diálogo entre a cultura produzida pelos que não temem a Deus (que comumente referenciamos como "o mundo") com os que o adoram. A música, por exemplo, aparece pela primeira vez com Jubal, da linhagem (caída) de Caim, logo no começo da narrativa de Gênesis. No entanto as primeiras referências de seu uso no contexto de expressão de relacionamento com Deus se dá somente muito tempo depois.

Nos nossos dias não tem sido diferente. No contexto geral, vivemos à margem da cultura de nosso país, no nosso gueto "gospel", com nossas próprias músicas, linguagens, costumes, pensamentos e "trejeitos". E como toda cultura de gueto, quando só olhamos para nós mesmos, sem um contraponto para julgamento, não crescemos. 

Sejamos sinceros, nossa subcultura tem sido um tanto quanto medíocre. No geral, temos sido alienados às questões político-sociais, oferecemos poucas respostas aos problemas existenciais da vida além de velhos jargões "crentes", pouco conversamos com a ciência e a nossa arte tem tido muito pouco para oferecer em termos estéticos e de conteúdo.  Como Frank Shaeffer cita em seu livro "Viciados em Mediocridade" em relação à visão do grande público sabre arte cristã audiovisual de hoje:
"Sempre que os cristãos (...) tentaram alcançar o mundo através da mídia - TV, filmes, propaganda etc - o público que pensa tem a ideia de que, assim como a sopa de um restaurante ruim, o cérebro dos cristãos ficaria melhor se não fosse mexido."
O pior nesse cenário é que além de não acrescentarmos muito na forma e na beleza, não oferecemos nada muito diferente do que "o mundo" oferece em seu conteúdo. Desde que o homem se tornou o centro e o fim (homocentrismo), vivemos em um gradual processo de "desencantamento e perda de sentido" do mundo (como coloca Weber, pai da sociologia). À exemplo de Narciso, na mitologia grega, a partir do momento que passamos a contemplar a nossa própria face, começamos a definhar até a morte. 

Como previsto por Pascal, a saída que "o mundo" criou para essa crise existencial foi o salto (irracional) para o prazer e o entretenimento, como forma de anestesiar os efeitos desse desencantamento. A sociedade do hiperconsumo, a ênfase de felicidade no hedonismo, a cultura da sensação etc. Infelizmente, ao invés de apontar uma forma diferente de "superar" essa crise, nossa subcultura "gospel" tem sido apenas uma forma diferente de salto. 

Devido à nossa aparente incapacidade de conectar a nossa vida diária com a nossa vida eclesiástica ("família estendida" e "família nuclear", respectivamente, na linguagem adotada por Marcos Almeida em seu texto "Constelação, Malabarista e Globo de Neve"), vivemos no mesmo universo de percepção do não cristão, nos domingos damos nosso salto irracional para um momento centrado em nossa busca de nós mesmos para nos sentirmos bem, fugindo da realidade, e na segunda voltamos ao nosso universo desconectado de sentido.

Marcos colocou de forma muito inteligente essa tensão irracional presente na música gospel ao colocar que o gospel é "um jovem malabarista mantendo no ar algumas bolinhas de pesos diferentes, uma delas é a religião, outra o entretenimento". Ainda segundo Marcos, o movimento seguinte, o de louvor e adoração, tentou extinguir a figura do entretenimento, mas "fora do ambiente de adoração não faz tanto sentido, ele é música experiência". A meu ver, o movimento de louvor e adoração dos anos 2000 (principalmente o "extravagante") também não respondeu a esse salto entre "família nuclear" e "família estendida", ao contrário mergulhou de cabeça nele.

A tentativa de Marcos, e de outros dessa nova geração que ele chama de "música brasileira de raiz cristã", de não fazer o salto da vida cotidiana, mas redimi-la, interagindo com a cultura em que vivemos e resgatando-a para a visão de mundo transformadora do evangelho, na verdade, não é nova. Na década de 70, artistas cristãos buscavam o mesmo objetivo, interagindo com a cultura brasileira.

Dessa geração musical, o trabalho que melhor consolida essa essência de diálogo com a cultura brasileira foi o disco "De Vento em Popa", do grupo "Vencedores por Cristo" (1977). Conforme Gladir Cabral escreve em seu texto de mesmo nome do disco, alguns fatores contribuíram para fazer que esse LP se tornasse um marco antológico na história da música cristã contemporânea brasileira. O primeiro foi o diálogo estético com a cultura brasileira. Embora a incorporação dos ritmos da música popular brasileira daquele tempo e contexto não tenha sido algo completamente inédito, ainda era uma quebra dos padrões da "família nuclear" daquela época, ainda mais pelos arranjos musicais. O segundo ponto de destaque foi a linguagem e construção de pensamento utilizados, contextualizados com a linguagem de sua época. 

Esses elementos, aliados aos temas das letras do disco, deram um forte apelo evangelístico ao disco, não como a de alguns pregadores de praça pública, que tentam impor uma mensagem em uma linguagem estranha às pessoas (e ainda acham ruim quando poucas pessoas param ouvi-los),  mas sim como alguém do mesmo contexto que chama para uma conversa pessoal e sincera.

Com o advento dos movimentos do gospel e do louvor e adoração, esse lampejo lançado por VPC e seus contemporâneos foi atropelado pelo mercado em massa dos novos movimentos (em especial, o gospel), mas não perdida. Seguindo pelo underground independente, muitos nomes seguiram por esse caminho, e vem ganhando força e somando pessoas nesses últimos anos. Apenas como ilustração, podemos falar de nomes como o próprio Gladir Cabral, Carlinhas Veiga, Silvestre Kuhlmann, Arlindo Lima, Tiago Vianna, Roberto Diamanso entre muitos outros, além dos diversos eventos e saraus que vem ocorrendo pelo Brasil, como o "Som do Céu", "Nossa Música Brasileira", "Sarau da Comuna" etc.

A retomada desse caminho pela nova geração de nomes como o "Palavra Antiga", "Crombie", a capixaba "Aline Pignaton", entre outros dessa "constelação", lança um novo horizonte para a música e para a cultura, "cristã" brasileira. Seguindo "a escola de Rembrandt", que possamos olhar para o mundo e nossa cultura, para o cotidiano da vida, e resgatá-los, mostrar que existe ligação entre a família nuclear e a família estendida, que o Deus do evangelho se revela no ordinário do cotidiano, sem a necessidade de saltarmos entre as duas percepções de realidades. Que possamos realizar o mandado cultural de Gênesis, debaixo do plano original de Deus, que é se relacionando com ele."



Referências

 - "Constelação, Malabarista e Globo de Neve" - Almeida, Marcos - Blog Nossa Brasilidade http://nossabrasilidade.com.br/constelacao-malabarista-e-globo-de-neve/

 - "De Vento em Popa" - Cabral, Gladir - Portal Cristianismo Criativo http://www.cristianismocriativo.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=540

 - "Viciados em Mediocridade" - Shaeffer, Frank  - Editora W4

 - Diversão e Tédio - Pascal, Blaise - Editora WMF Martins Fontes

 - "A Música Cristã no Mundo Desencantado" - Carvalho, Guilherme - "Nossa Música Brasileira" - 2011

 - "Por que valorizar o músico cristão de qualidade? O artista cristão e a espiritualidade contemporânea" - Carvalho, Guilherme

Parte 1 - http://www.youtube.com/watch?v=bL6lal02-rE
Parte 2 - http://www.youtube.com/watch?v=Snu_JLYiiLM


Espero que gostem.

No amor do mestre,

Renan Alencar de Carvalho

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